sexta-feira, novembro 16, 2007

lembrei-me

lembrei-me...
e fiquei feliz por isso... e quando saí de casa, em direccção à praia com um livro na mão, e senti o cheiro da terra, e depois os cheiros das castanhas, fiquei ainda mais feliz... talvez porque a tua ausência continua a ser marcada pela tua presença... já que as memórias continuam nítidas, os cheiros continuam presentes... e a saudade trazem a recordação de momentos extraordinários, de ensinamentos, partilhas, e risos, numa cumplicidade estranha, e quase quase mágica...
mais uma vez, marcas-te o meu dia... mais uma vez sorri por ti... atravessei sempre na passadeira, e ainda andei na estrada sempre na minha mão, "com atenção aos carros, porque eles são perigosos e muitas vezes não nos vêem"... não me molhei mas se isso tivesse acontecido teria mudado logo de meias, porque os "pés frios são o pior para as constipações"... e comi a maçã com casca mas muito bem lavada, porque "hoje já não é como antigamente e os pesticidas são perigosos para a saúde"...


como vês, não me esqueci de nada, e nem me esquecerei!!

(aqui fica um poema do livro que ando a ler... pensei em só por um excerto mas depois seria uma crime cortá-lo, por isso aqui fica... )

Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer facto?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Parece que passam sem ver-me os instantes
Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que ainda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi

Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e posses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?...
Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto aqui que calculas...
Muito mais morto aqui do que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da Tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste:
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheçes,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
E assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:

Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pele névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite, no convés, que consequências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar...

Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...

Faróis distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes...

Álvaro de Campos